A turma que decidiu consertar o “sistema”

domingo, 8 de novembro de 2015

A palavra “sistema” é um daqueles termos vagos, usados em geral para exportar responsabilidades ou descrever algo que não sabemos direito como funciona. “A culpa é do sistema” é aquele bordão meio adolescente com que todos põem fim a conflitos sem resolvê-los. O “sistema” pode ser político, econômico, jurídico ou até mesmo de computador. Fica sempre escondido atrás de uma cortina. É uma caixa-preta só acessível àqueles que têm poder, recursos ou mesmo dons sobrenaturais, representantes de um sacerdócio ou ofício técnico misterioso. De todos os “sistemas” que existem por aí, nenhum é mais obscuro que o famigerado “sistema financeiro”. Bancos, corretoras, Bolsas de Valores, fundos de pensão – todos parecem fazer parte de um outro universo, em que a vida é pautada pelo zigue-zague frenético de gráficos, numa espécie de videogame com regras mais impenetráveis que o críquete. Eis que entra em ação o jornalista Michael Lewis e mostra quem são os magos que, atrás das cortinas, dominam o jogo. Como Oscar Zoroastro, o infame mágico de Oz, eles não passam de uma fraude. O jogo, diz Lewis, é um caça-níqueis viciado em favor da banca, os corretores que controlam uma feitiçaria conhecida pela sigla em inglês HFT, ou “operações de alta frequência”. É essa, em suma, a tese de Lewis em seu best-seller Flash boys – Revolta em Wall Street, lançado no ano passado.

LIVRO DA SEMANA Flash boys - Revolta em Wall Street, de Michael Lewis (Foto: divulgação)

Poucos livros tiveram um impacto tão profundo no público que retratavam. O herói de Lewis, o operador canadense Brad Katsuyama, fundador da Bolsa IEX, foi transformado numa espécie de herói na luta por regras justas no mercado financeiro. Os vilões, a turma da alta frequência, passaram a atacar Lewis de todas as formas. Um bate-boca entre Katsuyama e um deles teve o poder de paralisar a atividade nas Bolsas, enquanto era transmitido ao vivo pela rede de TV CNBC. O consenso acadêmico, antes favorável à HFT, virou. Nos últimos 18 meses, vem saindo uma enxurrada de estudos comprovando os efeitos nefastos da HFT para os mercados e seu papel decisivo nas quebras instantâneas, conhecidas como “flash crashes”. Com duração inferior a minutos, elas têm atormentado as Bolsas desde 2010 – a última ocorreu em 24 de agosto passado. Mas, afinal, o que são os tais “operadores de alta frequência”, o que fazem de tão ruim e por que Katsuyama virou herói em Wall Street?

A palavra-chave para entender o mundo financeiro depois da crise de 2008 é velocidade. Papéis são negociados hoje em dezenas de Bolsas, em transações que duram milissegundos – dá para fazer umas 400 num piscar de olhos. Lewis explica de modo magistral a luta dos operadores para obter ínfimas vantagens no tempo de acesso às Bolsas. Descreve a instalação de um canal de fibra óptica entre Nova York e Chicago, alugado por US$ 14 milhões por permitir economizar uns poucos milissegundos. Conta que as corretoras HFT fazem de tudo para instalar seus servidores o mais perto possível das máquinas onde as operações das Bolsas são fechadas, pagando aluguéis milionários. Mostra que, graças a isso, interceptam intenções dos operadores mais lentos e agem antes deles, alterando o preço dos papéis a seu favor.

Katsuyama percebeu a trapaça porque jamais conseguia fechar a compra de 10 mil ações pelo preço que inicialmente aparecia em sua tela. Bastava começar a operar para, rapidamente, o preço subir. Eram os operadores HFT que, sabendo de sua intenção de compra, agiam em milissegundos para obter vantagem. O mérito de Lewis é construir uma narrativa eletrizante, capaz de explicar em detalhes essa e outras artimanhas que distorcem o mercado. Ele acompanha a história de Katsuyama e de sua equipe do momento em que percebem, no pequeno Royal Bank of Canada, que não conseguiam explicar o que acontecia em suas telas, até que fundam uma nova Bolsa, a IEX, com o objetivo de funcionar na defesa do interesse dos investidores e tornar virtualmente impossível a manipulação de dados pelos operadores de alta frequência. Paradoxalmente, o truque usado para driblá-los foi atrasar um pouco as transações.

Desde que lançou seu livro, Lewis foi criticado por combater tecnologias que contribuíram para dar mais liquidez ao mercado e por defender o interesse de bancos e corretoras lentos e paquidérmicos, como o Goldman Sachs, incapazes de competir com inovadores mais ágeis e empreendedores. Em artigo na revista Vanity Fair, ele afirmou nunca ter sido contra a HFT em si, apenas contra os abusos que prejudicam o mercado. Seu interesse, diz ele, foi a decisão de Katsuyama e sua turma de resistir à tentação do dinheiro fácil. A novidade não é que haja gente levando vantagem ou reclamando do “sistema” – isso sempre há. É que tenham tentado consertá-lo – e dentro das regras. “Não escrevi sobre eles porque eram controversos”, diz Lewis. “Escrevi sobre eles porque eram admiráveis.” São mesmo.

 

 



fonte:http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/helio-gurovitz/noticia/2015/11/turma-que-decidiu-consertar-o-sistema.html
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